Uma família numerosa, uma casa cheia.
A casa estava cheia de amor, carinho, risos, não de bens
materiais ou dinheiro – esse escasseava sempre!
Todos os anos, por altura do Natal, quer chovesse quer
fizesse frio, ninguém faltava à ceia de Natal, naquela pequena casa onde, para
caber a mesa – que começava num quarto de dormir, passava pela cozinha e
desaguava numa sala de estar – todo esse trajeto tinha que ficar desimpedido de
móveis e eletrodomésticos porque, ou eram estes ou as pessoas. No Natal, optava-se
sempre pelas pessoas.
Depois de desenvolvida toda a logística de remoção de móveis
e equipamentos, passava-se à fase seguinte: a colocação das mesas. Poucos lares
têm mesas com o mesmo tamanho ou altura, por isso, havia sempre um ou mais desafortunados
que ficavam na união das mesas, com o prato todo inclinado, a ter que escolher
entre uma e outra mesa para colocar o seu copo, a ter que levar com duas pernas
de mesas diferentes entre as suas próprias pernas, etc.
O resultado final era uma mesa enorme, que praticamente
dividia a casa ao meio e onde, de uma maneira ou de outra, todos lá iam caber.
Ir à casa de banho ou ao exterior era uma aventura, que podia ser empreendida
das seguintes formas:
1) por cima da mesa - normalmente crianças pequenas
cujos pais não fossem supersticiosos e, mesmo assim, havia sempre um sermão dos
que eram supersticiosos com o aviso de que dá muito azar passar por cima de uma
mesa, embora nunca ninguém soubesse dizer porquê – não importa, dá azar e ponto final,
não se fala mais no assunto;
2)ou por baixo da
mesa – também aqui a tarefa esteve sempre mais facilitada para os mais
novos porque, para além das razões óbvias, como o tamanho, achavam um piadão
estar debaixo da mesa a fazer cócegas e a fugir daqueles que têm pouca destreza
para os apanhar depois, cansavam-se
dessas traquinices e iam brincar ou tentar adivinhar em conjunto o que é que,
da lista feita uns dias antes, o Pai Natal escolheu de presente para lhes dar;
3)e finalmente, contornando
toda a mesa, fazendo levantar toda a gente – aqui falamos dos seniores da
família. As duas outras opções estavam fora de questão, por razões que também
são óbvias, restava-lhes pedir licença e desculpa, a um por um dos que faziam
levantar, até chegar ao seu destino. A dada altura iriam querer regressar ao
seu lugar mas, como tinham percebido o alvoroço que se gerara, ficavam por ali
mais um pouco (quer estivessem no interior ou no exterior) a empatar, a fingir
que estavam a fazer não se sabia bem o quê - ninguém os deixava fazer nada para
não se cansarem!
Era necessário arranjar toalhas
de mesa suficientes e, mais ou menos a combinar, que cobrissem toda aquela
mesa. Como não se faziam conjuntos de 30 do que quer que seja (pratos, copos, talheres,
etc.), preenchia-se a mesma com todo o tipo de copos, pratos e talheres para que
ninguém ficasse sem “ferramenta”.
Por fim, vinha o evento propriamente dito: o jantar de Natal
(ou ceia, como queiram).
Que não se pense que, a esta altura, era só sentar e comer
porque isso ainda estava longe de acontecer, numa família numerosa como esta.
Havia toda uma preparação necessária antes de a comida
começar a ser distribuída pela mesa.
Três dias antes o bacalhau esteve a demolhar, com trocas de
água diversas, em panelas industriais cobertas de água. De lembrar que este
tipo de organização só é possível com a distribuição das diferentes tarefas. Havia
alguém encarregue da “demolha do bacalhau”.
Já durante a tarde, uma pessoa ficava a descascar batatas e
alhos; outra a lavar e a arranjar couves e grelos. Á medida que os outros
começavam a chegar dos seus empregos, uma ia para um fogão fazer as rabanadas e
os mexidos, outra ia para outro fogão fazer a aletria e o leite-creme. Estas
precisavam ter muito cuidado em separar rabanadas com e sem molho; aletria com
e sem canela; leite-creme queimado e por queimar – a ideia era conseguir
agradar a todos e que todos comessem aquilo que mais gostavam, sem sacrifício
(o das cozinheiras não conta, evidentemente…).
Os próximos a chegar dos empregos já iam ‘penicando’ as doçarias
prontas, com as mais diversas desculpas: “não comi nada até agora; vocês sabem
que eu só gosto disto quente; estava mesmo a precisar para me aquecer, se não
como qualquer coisa não consigo fazer nada”; etc.
Entretanto, começavam a chegar ao fogão as panelas industriais,
usadas apenas nestas ocasiões, para cozer: o bacalhau, as batatas, os ovos, as
couves e os grelos. Para quatro ou cinco pessoas menos apreciadoras do típico
bacalhau havia sempre polvo; e entre o polvo cozido c/ batatas ou o polvo
estufado c/ arroz ganhou o segundo e já há muitos anos que o arroz de polvo era
também um prato tradicional do Natal nesta família.
Algures pela cozinha, alguém já pegava nas carnes para assar
no dia seguinte, temperando-as e espalhando-as pelas diversas assadeiras, logo
após são colocadas no forno, prontinhas a que na manhã seguinte seja só ligá-lo.
Parecem os preparativos de um restaurante, não é? Tinha que ser ou corria-se o
risco de nem às 4 da tarde estar o almoço pronto.
Os familiares que, nesse ano, ficaram de ir festejar o Natal
com os sogros ainda passavam lá para desejar boas festas, petiscando das
iguarias já prontas, como se quisessem levar um pouco do gostinho junto com
eles.
Primeiro que os “panelões” cozinhassem o que lá estava
dentro era um dia de juízo!
Quando as pessoas mais experientes declaravam que tudo estava
pronto era necessário pedir voluntários, com alguma força braçal, para escoar a
água. Normalmente eram precisos dois homens para levar as panelas grandes a
escoar, o que, também normalmente era feito fora de casa dado o tamanho, o peso
e a quantidade de vapor gerada no ato.
Conseguir que tanta gente se sentasse à mesa, anunciando que
o jantar ia ser servido, requeria umas goelas de tenor ou de ardina e, mesmo
assim, o anúncio teria que ser repetido algumas vezes até que, finalmente
começasse a acontecer.
Começa então a ‘guerra’ de quem gosta do quê e como; quem
tempera assim ou assado; o bacalhau está sem sal para uns, salgado para outros;
os grelos cozeram demais para uns, e estão pouco cozidos para outros; as
cozinheiras desculpam-se por não poderem agradar a todos e informam que para o
ano será melhor (ao invés de dizer aos reclamantes que para o ano fazem eles o
jantar!). Enfim, no final do jantar, os pratos ficavam rapados, todos estavam
satisfeitos e meia dúzia deles já tinham um copito a mais na asa – já estava
tudo a rir e a falar uns decibéis acima do normal.
O tempo passou e, aproxima-se a meia-noite, hora marcada
para o Pai Natal aparecer com as prendas naquela casa. E não me venham cá dizer
que nas outras casas está marcado há mesma hora porque não pode ser –
o homem é grande e mágico mas não é omnipresente - não está ao mesmo tempo
em toda a parte!
O melhor é parar com a discussão pois começo a enervar-me.
Bom, há hora marcada, mais coisa menos coisa, o Pai Natal lá aparecia e,
também toda a gente sabe que para as crianças não se assustarem o Pai Natal
nessa noite ficava ‘muito parecido’ com alguém lá de casa, tudo isso para
conseguir alguma “familiaridade” naquele lar. Acho que acontece o mesmo nos
outros lares por onde ele passa – o Pai Natal é ou não parecido com alguém lá
de casa? Está tudo muito bem calculado e muito bem feito.
Nesta família, como em tantas outras, com tão grande numero de pessoas a
distribuição das prendas só termina lá para as duas e meia da manhã, até porque
o ‘pai natal’ já está com uns copitos e custa-lhe juntar as letras no “de:” e
no “para:”, armando confusão e tendo que ser ajudado por quem escreveu os
nomes.
Terminado o frenesim da distribuição de lembranças, a adrenalina geral começava
a baixar, o João Pestana começava a bater à porta e as pessoas começavam a
despedir-se, de coração quentinho porque sabiam que ainda estariam juntas no
dia seguinte, para mais comida, jogos de cartas, jogos de tabuleiro familiares,
etc.
Era assim o Natal especial desta família numerosa, como tantas outras…